domingo, 29 de abril de 2012

Amanheceres e feriados

Caminhando pelas ruas é fácil perceber que moro num bairro deslocado da realidade paulistana: caminha-se "seguro" na madrugada, as ruas são quase sempre limpas, árvores nos presenteiam com frutas, pássaros nos despertam em seu coro de diferentes vozes. Não entendo nada de pássaros e é notável que grande parte dos dias eles me irritam e me acordam antes do que eu gostaria, assim como hoje. Mas hoje não importa, porque hoje é feriado.
Um vizinho escuta uma rádio que toca incessantemente óperas. Mal me lembro da existência de rádios, não poderia imaginar que haveria tal rádio. E não podemos dizer que ela tenha sido apresentada da melhor forma possível. Não há nada no mundo que deva ser escutado nessa altura, nada mesmo.
Lembro-me dos sabores dos feriados, de muitos deles. Tenho uma terrível memória, mas uma capacidade de recordar minhas lembranças sensoriais incrível, quase impossível de descrever. Meus sentidos se comunicam e causam reações em todo o meu corpo de forma muito mais eficiente do que qualquer questão emotiva ou racional. Somos de uma emotividade doente, eu, você, todos nós.
Amanhecer frio, feriado. Óperas e passarinhos. E rádios, quem diria: rádios! Cada um destes elementos capaz de despertar diferentes memórias sensoriais. Alguns deles trazem consigo camadas e diferentes tipos da tal da memória, como no dia que descobri que ópera era coisa do "populacho", que pessoas com gosto musical refinado não gostavam de ópera. Fico aqui me lembrando disso e pensando quanta discriminação poderia haver em tal fala.
Não tentarei de forma alguma qualificar ou desqualificar a ópera do ponto de vista técnico. Cada vez que tenho que olhar para uma música desta forma fico perdida e, na verdade, acontece mesmo de eu precisar fazê-lo. Mas pensando sobre a fala deste, que era um amigo bem mais velho que eu na época, um senhor da intelectualidade paulistana, parece-me que os admiradores de ópera eram vistos como os funkeiros ou sertanejeiros ou qualquer um desses segmentos.
Vá hoje em dia a uma ópera e veja quantas pessoas do "populacho" estarão presentes. Chuto que nenhuma (por mais que eu mesma - que sou do populacho- não vá a uma ópera há anos). Porque hoje em dia ópera é um universo elitizado. Ou melhor, o pensamento médio acredita que a ópera é coisa "chique".
Esperemos 100 anos (se o mundo não for à forra antes) e grandes salões de orquestra tocarão Mr. Catra com dançarinas seminuas para a futura elite. Porque o que é o popular é que tende a sobreviver. Se hoje nos parece estranho e ruim porque é contemporâneo, em 20 anos será bem mais aprazível. Em 100 será canônico.
Essa é a verdade sobre a música, sobre todas as manifestações artísticas e culturais. Esse é, inclusive, o grande desafio da arte. Mas este desafio, este desafio não foi feito para ser discutido em feriados. Volto ao meu livro. Ficção. Porque feriados são das ficções, dos passarinhos e dos baldes de pipoca.

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