sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Dos prazeres e da danação

Faço parte de uma maioria: das pessoas sexuais. Isso quer dizer que não só gosto de sexo, como gosto muito e que sexo é uma parte bem importante da minha vida. E quando eu falo sexo eu não to só falando papai e mamãe não (aliás, que merda de termo horrível): eu gosto de uma grande variedade de práticas sexuais heterodoxas, fetichistas, não convencionais e várias até mal vistas por grande parte da sociedade.
Faço parte também de um grande grupo oprimido conhecido por mulheres. Sem querer entrar em todos os meandros do que isso significa porque existe todo o feminismo pra explicar isso, isso quer dizer também que são furtados a mim direitos como o prazer, a liberdade, a expressão e também o de auto-reconhecimento como ser humano. Sim, porque historicamente nós mulheres e nossa (não)identidade se construiu não negação do ser humano. Seguindo a dicotomia basal, mulher não é homem, se homem é cidadão, mulher é não-cidadão. Se homem é livre, mulher é prisioneira. Se homem é possuidor, mulher é posse. Se homem é sujeito de prazer, mulheres são objetos. E eu poderia estabelecer mais milhares de relações dessas, mas acredito que essas sejam suficientes para ilustrar o que estou tentando discutir aqui.

Certo, logo de cara vocês poderiam encontrar uma contradição clara no meu texto que invalidaria todo o resto, como posso eu me colocar ao mesmo tempo como ser sexual e como mulher, sendo que estou dizendo que às mulheres é vedado o direito de serem (serem pessoas)? A resposta é simples, ainda que seja infinitamente complexa: porque tamos na luta pra desconstruir isso.

Que ótimo! Estamos desconstruindo isso então automaticamente eu estou livre de sofrer opressão nas minhas relações afetivas, sexuais e amorosas? Óbvio que não!!! O patriarcado é um sistema que incide sobre todos e a dinâmica das relações sociais na sociedade machista, construída sobre o patriarcado é de opressão às mulheres sempre. Não é a algumas, não é às vezes. É pra todas e é sempre. Vamos todos explodir o mundo e começar de novo, então? De preferência, não (não que não seja uma boa ideia). Vamos ser agentes ativos desse processo de desconstrução, mas sempre consciente que isso não evita que as mulheres continuem a ser oprimidas e os homens continuem a ser opressores.

Vamos colocar em termos práticos? Vamos, por favor, sei que é preciso.
Situação 1:
Digamos que eu inicie um diálogo com um homem de nome Sr. X. o Sr. X é um homem (por acaso tb é cis e ht) e ele, como eu, curte BDSM. Eu Sr. X entramos num "jogo de sedução". Estou super interessada no Sr. X e ele parece também interessado em mim. Sr. X. sabe que vivo com meu companheiro e que temos uma relação não monogâmica, mas que ainda assim, dividimos a casa e a vida cotidiana. Marco de sair com Sr. X, no dia um incidente em casa me impede de ir. Sr. X compreende o caso mas a partir dali passa a insinuar que meu companheiro tem uma relação abusiva comigo e começa e transformar isso em parte de sua "brincadeira" sexual. Isso me ofende profundamente pelo amor e respeito que tenho pelo meu companheiro, mas eu estou envolvida com o Sr. X e aceito. Aceito porque eu aprendi, como mulher a aceitar um bando de merda quando se trata de relacionamentos. Aceito porque tenho desejo pelo Sr. X. Enfim. Aceito.

Situação 2:
Conheci num bar o J.A. O cara é super bacana, nosso papo tem tudo a ver, acabamos ficando e transando no mesmo dia, o sexo é incrível, a gente super se entende na cama, me sinto bem com ele. Continuamos a nos falar quase todos os dias. Por encontros e desencontros da vida acabamos por demorar a nos encontrar de novo. Quando nos encontramos o papo continua maravilhoso. Nos beijamos, os beijos são incríveis, o clima fica super sexual e vamos pro motel. Chegando no motel me sinto altamente incomodada e digo que não quero continuar. Me esquivo e tento sair da situação. J.A. conversa pacientemente comigo, voltamos a nos beijar, eu digo que não quero passar disso e acabo cedendo à pressão e transamos. Por mais que ele continue a me tratar super bem e ser um querido saio daquele dia com uma sensação super estranha. Mas continuamos a nos falar como sempre.

Situação 3:
Vivo com F. Por conta do meu trabalho eu viajo muito e isso faz com que, eventualmente, eu e F. não estejamos juntos. F. é um cara muito legal mesmo, a gente tem uma ótima sinergia no dia a dia, na cama, na rua, na chuva, enfim, nosso relacionamento é tudo de ótimo. Numa de minhas viagens estou conversando pela internet com F, tendo uma conversa amorzinho e F. começa a entrar em assuntos relacionados a sexo. Eu desconverso porque não estou no clima (e/ou porque não gosto de falar disso na internet). F. continua na conversa amorzinho mas sempre tentando puxar a conversar para o sexo. Em meio a conversa F. manda uma mensagem dizendo "olha só como vc me deixa" e uma foto de seu pau duro. Eu mando um emoticon de risadinha qualquer e falo qualquer coisa, envergonhada e desconcertada porque eu não estava nem a fim e nem no clima. Digo que estou com sono/ocupada/qqr desculpa e saio da internet. Volto de viagem e transamos loucamente e continuamos a nos amar e viver felizes, eu e F.

Teste simples. O que essas três situações tem em comum?
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
São três situações de abuso! E, apesar de não serem situações de fato reais, já passei pelas três (E por taaaantas outras) na vida. Nos três casos estamos falando de uma mulher que gosta de faz sexo. E nos três casos estamos falando de pessoas com as quais ela mantinha relações consensuais. E nos três casos estamos falando de abuso. Pode isso, Arnaldo? Super pode!

Quando estamos numa relação consensual com alguém isso não impede que exista abuso. É chover no molhado, mas a grande maioria de estupros é praticada por namorados, maridos e companheiros das vítimas. Dizer que só porque a pessoa mantém uma relação consensual não há abuso é o mesmo que dizer que essas vítimas não existem. Que marido não estupra. Ou seja, que a partir do momento que você "assinou o contrato" de consenso você está obrigada a aceitar qualquer situação, inclusive o abuso, coação, estupro, assédio (e um longo etc) sem reclamar. Ah, e se não é uma relação consensual padrão também pode ter abuso. Se é um "acordo" não-monogâmico também acontece abuso. Se é um "contrato" BDSM também pode ter abuso. Ou, resumindo, em qualquer relação pode haver abuso. Principalmente em relações entre homens e mulheres (principalmente mas não somente).

Ah, mas ninguém denúncia. Ah, mas como que você vai provar. Ah, mas pode ser mentira. Ah, mas _____ (preencha aqui com qualquer desculpa para o machismo). Legalismos a parte (e não sou contra eles), no mundo real o buraco é mais embaixo. Vá perguntar pras mulheres que foram vítimas de abuso como é tranquilo denunciar. Super fácil. Porque, afinal, existe "delegacia da mulher" então a lei está ao nosso lado. E a delegacia da mulher, assim como os relacionamentos consensuais, está numa bolha fora da realidade onde o machismo não existe. Só que não. Só que nem um pouco. Só que absolutamente o contrário.

Eu, Bruna, não sei como vamos e se vamos um dia ter recursos legais para se lidar com o abuso de fato e nem esse é o centro da minha preocupação. No dia em que a maioria das pessoas perceber que essas e tantas outras situações são abusivas e que as mulheres são MESMO oprimidas (as sexuais, as assexuais, as demissexuais e qualquer outra relação que tenham com sexo) creio que o caminho legal será facilmente trilhado. Mas enquanto denúncias de abuso forem acobertadas por um suposto consentimento, como se este impedisse o abuso, não haverá lei que nos proteja nem estratégia de denúncia que esteja a nosso favor.

domingo, 16 de novembro de 2014

Alcoólicas, em homenagem a Hilda Hilst

Temos um infinito, talvez o próprio.  Por que então a urgência? 
Porque urge de mim um canto de encantamento, uma poesia ritmada. Uma prece prosaica e profana feita de desejo in latência. Feita do que são feitas, também, as asas de fada: suave, certeza, encanto. Feita da minha matéria mais  primordial, aquela que partilho com os astros. Feita de ausências impossíveis. Feita de presença  sensorial (como quando sinto, mesmo em estado ébrio, o exato cheiro teu com café sempre que evoco sua presença virtualmente possível).
Feita com letras de amor verdadeiro e corpo daquela que viveu pra ver. Daquele que viveu e esperou. E viu.  Viu mais e regozijou. E reviu. Tão de perto. Tão sem volta os castanhos nos verdes infinitos. Os corpos derretendo, tremendo e buscando o novo mesmo novo grito. 
(Tão em paz, tão perto do divino, tão profundo,  sereno... ácido. Ecoa) 
Ecoa

domingo, 9 de novembro de 2014

Do próximo encontro...

Que tenham pessoas, ou catracas, ou ruas, ou flores... vejo tudo desaparecendo ao te avistar. Com as pernas trêmulas e os braços enrijecidos, vou caminhar até você tentando medir os paços com a minha respiração. Vou temer, por um segundo, olhar nos teus olhos, mas assim que os nossos se encontrarem sei que terei a coragem suficiente para, enfim, nosso primeiro beijo direto, sem mediações de tempo, de álcool e da timidez. Não que a timidez não esteja lá, mas quando eu penso agora neste momento, a timidez parece ínfima perto do desejo de tocar com os meus os teus lábios. E deste pouso fazer decolagem.

Segurando com força suas duas mãos nas minhas você vai dizer algo, sobre algum lugar e eu vou responder que sim. A verdade é que o onde pouco me importa. (todos nossos onde se transformam em caminhos floridos e inesquecíveis.) E vamos caminhar, evitando nos tocar, ao mesmo tempo que nos desejamos profundamente. (aqui a timidez volta a ganhar espaço)

E sentados em qualquer lugar, perto demais para nos ignorarmos, longe demais para a profusão, trocaremos palavras sem fim. E você me dirá, entredentes: - Bruna, você é exagerada! Vou sorrir, te olhar no fundo dos olhos, piscar uma, talvez duas vezes e te beijar. Te olhando muito, muito de perto, responderei: - Sou, mas não vale à pena? E um beijo selará mais esse entendimento, um beijo intenso, suave, um beijo de quem gostaria que, de fato, tudo ao redor se dissolvesse. 

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Por uma estética gorda (pré-manifesto)

A minha pesquisa precisa sair de mim e ganhar o mundo, para entrar em mim, trazendo consigo o mundo. Minha busca, para que não se perca me minhas curvas e dobras, precisa deslizar com o olhar por outras dobras, curvas, cadências, silêncios, vergonhas e também orgulhos. Minha busca, antes de ser minha, tem que ser nossa. Meu corpo, antes de me pertencer, é objeto político, pertence à luta.

Em tropeços poéticos eu clamo pelo eco e por novas vozes. Peço a permissão de olhar e ver seus corpos, suas luzes e sombras, sua escrita. Interessa-me ver-lhe. Teu corpo e meu corpo interessam-se pela liberdade. Conclamo uma dança entre nossas formas, uma dança sem modelos e artistas, uma dança ancestral e despudorada. A dança do ser-mos mulheres gordas.

Cubra-se, mostre-se, vista-se, mergulhe. Inove. Repita. Pinte-se, despinte-se. Brilhe. Mergulhe novamente. Ame, ame-se. Mie, gargalhe, grite. Escreva, escreva em si.



______________________________________
Pé ante pé, dou o segundo passo para desafiar os cânones (e a gordofobia) e construir um projeto de uma estética gorda. Neste passo eu preciso de você.
Convido todas as mulheres (cis e trans) que tiverem interesse em participar do projeto a virem comigo construir essa ruptura. Vou realizar algumas sessões de fotos durante os próximos meses e estou em busca de pessoas dispostas a serem fotografadas. Não quero modelos, quero verdade, quero pessoas inteiras, não só formas. Quero suas histórias. Quero ir além.

Não existem regras em relação ao tipo de fotos, podem ser com ou sem nudez, sozinha ou acompanhada, sensuais, vulgares, nada sexuais. Cada sessão será combinada diretamente com a participante, levando em consideração a sua identidade, expressão e vontade.

As fotos serão feitas na casa da participante ou em localidade oferecida pela participante. No Rio de Janeiro as fotos podem ser feitas em local oferecido por mim.

Se você tem interesse em participar do projeto, preencha o formulário clicando AQUI

Confira o calendário para saber quando poderei fotografar em cada cidade:
São Paulo: 03 a 08 de novembro
(No Rio de Janeiro as sessões podem ser combinadas em qualquer data, tirando as que estarei em outras cidades)

P.S.: O projeto é gratuito e a participação é voluntária. Para participar é preciso preencher autorização de uso de imagem disponibilizada em contato posterior. Menores de idade podem participar desde que autorizada pelos mais e em situações que não remetam à sensualidade e não contenham nudez.

Dúvidas ou inquietações, escrevam para o e-mail bruna.barlach@gmail.com ;)

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Gordofobia e calor

O tipo de assunto que gera discussões épicas na internet é adoradores de frio x adoradores de calor. É incrível como a internet é um terreno fértil para as mais inúteis discussões e até um tópico "inocente" como esse acaba gerando discussões raivosas.
Confesso que já entrei nessa discussão algumas vezes ao longo dos meus anos perdidos pela internet. Mas nunca cheguei a problematizar politicamente porque a defesa do calor me causa tanta raiva até ver que todas as pessoas que eu conheço que gostam de calor são magras. Todas as pessoas que postam motivos para gostar do calor, são magras.
Não estou com isso querendo dizer que não existem pessoas gordas que gostem de calor, até porque seria um erro igualar todas as pessoas gordas, que são um grupo plural, assim como mulheres, pessoas negras e etc.
Essa semana, ao ler um post do Buzz Feed "21 situações que todo incompreendido amante do calor já enfrentou" eu tive o clique que, em primeiro lugar, fez com que eu ficasse muito muito revoltada e em segundo lugar fez com que eu levantasse reflexões mais políticas sobre meu ódio ao calor e aos amantes de calor.
Como mulher gorda, é realmente muito difícil amar o calor porque o calor é a época do ano que a gordofobia se expressa da forma mais dura. É a época que as mulheres gordas mais sofrem. E eu explico porque.
Primeiro, pessoas gordas sentem mais calor e tendem a suar mais. Esse suor que pode ser considerado ok em homens e sexy em mulheres magras (o que não é nada bom, pois é pura objetificação), em mulheres gordas é considerado nojento. Uma mulher gorda suada certamente vai ser evitada pelas pessoas nas ruas. Isso quando não temos que ouvir xingamentos que nos comparam a animais, como porcos, e por aí vai.
Da mesma forma, se andar de transporte público já não é fácil para as pessoas gordas porque ele não foi feito pensando na diversidade dos corpos, tente fazer isso no calor. Mal estar, sudorese intensa, pessoas te apontando, olhando pra você com nojo. Se você, então, não tem carro, não pode andar de táxi ou similar vai acabar evitando ao máximo sair de casa.
Se, mesmo assim, enfrentar o desafio da humilhação e sair de casa no calor, o seu destino certamente não será a praia. A não ser que você tenha comprado alguns kits extras de auto estima, visitar a praia ou a piscina sendo gorda tende a trazer mais tristeza do que prazer. Se os olhares de reprovação são constantes quando você está vestida, imagine quando usa um maiô ou quando comete o crime capital de usar um biquíni.
Encarou o desafio de ir a praia? Nem pensa em entrar no mar. A praia inteira para pra te acompanhar com os olhos quando você tira a saída de praia e acompanha seus passos até o mar. Por algum motivo, as pessoas se afastam, pensando que você tem alguma coisa contagiosa.
Ficou com fome? Melhor voltar correndo pra casa! Sabe aquele sorvete que as pessoas adoram tomar no calor? Então, ele não é permitido também pra gorda. Aliás, nem o sorvete, para não ouvir comentários desagradáveis de que é por isso que está "deste tamanho", nem um milho verde, pra evitar que alguém comente que "finalmente você está fazendo regime".
Caminhar com os amigos na rua deveria ser o direito de todos, certo? Se você está com a autoestima bombando e vestiu uma roupa de verão e saiu pra caminhar, certamente vai ter que enfrentar no dia seguinte as consequências disso, com assaduras pelo corpo.
Ah, esqueci de dizer, roupas de verão é algo que absolutamente não existem. Se você for muito insistente talvez encontre uma bermuda de cotton e olhe lá. Simplesmente não existem roupas de calor para quem usar manequim maior que 50, afinal, se a marca já se prestou a fazer roupa pra gorda, o que é raro, raríssimo (e caríssimo), é claro que ela está fazendo roupa pra você se esconder. Chamar a costureira também não adianta, já que elas não sabem fazer roupas para a sua modelagem e se encontrar uma profissional fera que consiga, bem, volta pro começo do texto pra ver o que acontece quando gordas saem às ruas no calor.

Você pode gostar de calor? Minha gente, vocês podem gostar do que quiserem. O que não pode é ficar usando seu privilégio pra sambar em cima das pessoas gordas que sofrem, efetivamente, com o tempo quente.
Não estou com isso fazendo uma defesa ao frio (ainda que eu obviamente prefira, já que posso viver minimamente melhor), já que o frio traz consigo outros problemas: como a triste realidade dos moradores de rua no tempo frio.
Então, da próxima vez que formos falar de temperaturas, atividades e gostos, não vamos esquecer que a gente vive numa sociedade atravessada por opressões, falou? Valeu ;)

Pra fechar, eu no biquíni, enfrentando a gordofobia.
Foi esse ano, em Paraty. Estava passeando com a minha irmã de barco e, bem, tudo isso aí de cima e mais um pouco eu ouvi meus amigos. Não vão me dizer que é sussa pras gordas colocar biquíni apenas porque NÃO É!
(tanto não é que depois dessa viagem minha mãe comprou muito "simpaticamente" um maiô pra mim, gordofobia? Não, imagina!)

terça-feira, 30 de setembro de 2014

The eye of the beholder

Eu estou gorda. Não, não estou, eu sou gorda, e tenho sido pelo menos 90% da minha vida. Ainda que esta não seja nenhuma novidade, quem vive na nossa sociedade (capitalista, patriarcal e MUITO gordofóbica) sabe que existe estar gorda e estar GORDA. E eu estou GORDA.

Se você não faz ideia do que eu to falando, vamos tratar de números. Hoje eu peso algo entre 125 e 130 kg. Muito provavelmente estou mais pesada do que jamais estive (talvez já tenha estado outra vez nessa faixa, mas eu estava tão deprimida que não conseguia nem cogitar me pesar).

Se eu começar a entrar em razões aqui vou escrever uma novela e meu objetivo não é (só) falar sobre mim: é falar sobre o outro.

Eu tenho uma porrada de objetivos e sonhos na vida e, incrivelmente (chorem gordofóbicos), ser magra não está entre eles. Estar bem de saúde está entre eles, mas sou escolada o bastante em saber como a gordofobia opera para ter o conhecimento de que saúde não é inversamente proporcional ao peso. Loucura, mas não é.

Há um ano e meio, dois anos atrás, antes de eu me mudar pro Rio e começar este relacionamento com o companheiro com quem vivo eu era uma gorda menos gorda. Uma gorda mais socialmente aceitável pelo diagrama da gordofobia. Numericamente, meu peso variava entre 105, 110 kg. Legendando para quem não é do universo das sanfonas, onde vivem eu e a maioria das pessoas gordas, naquela época eu usava manequim 48/50 e hoje eu uso uns 54/56 (não sei ao certo porque não acho roupas que me servem, principalmente calças, mas bora tocar a vida).

No auge do meu 1,73 se alguém aí tiver a fim de fazer os cálculos, vai ver que eu já era uma "obesa severa" e agora sou uma "obesa mórbida". Sério, acho essas palavras muito loucas. Eu to longe de ser uma pessoa severa, pelo menos na maioria dos assuntos, já mórbida eu sempre fui, viu. Até porque quero ver alguém conseguir  ser gordo nesse mundo e não ter uma visão amarga da vida, quando a primeira coisa que as crianças aprendem, e não é de hoje, é que você é o errado da escolinha.

Voltando ao diagrama da gordofobia, sendo quem eu sou hoje e estando vivendo no corpo que vivo e nesse planetinha, como conversamos lá em cima, sei que passei do limite da aceitabilidade social. Isso é: deixei de ser aquela que "é gorda, mas na balada eu comia" para ser "como você tem coragem de comer essa mina". Veja, nenhuma das duas concepções é sobre mim, as duas é sobre como eu sou vista, pior, como os homens me veem e a outras mulheres gordas.

Cá estou eu, 29 anos muito bem vividos, feminista, socialista, militante de uma porrada de coisa aí, inclusive da comunicação, vivendo meus dilemas e minhas crises pois somos ativistas E somos pessoas com dores, sentimentos, questões intrínsecas e extrínsecas e por aí vai. Eu nasci mais ou menos uma crise com perninhas, então dizer que estava eu passando por uma crise é lugar comum, mas vamos lá... estava eu passando por uma crise. E essa crise tinha/tem também a ver com meu corpo e com as minhas escolhas de vida. As questões são plurais e complexas, mas  focando friamente no que diz respeito ao corpo, isso tava me incomodando.
Me incomodando porque eu fui pra casa da minha mãe e apenas todas as mulheres da casa, minha mãe, minha tia e minha avó, ficaram apertando a maldita tecla de como eu preciso emagrecer. Em outro estado meu pai engrossando o coro. "Ah, mas é na sua saúde que estamos pensando". Minha irmã, uma ex-gorda (e a pessoa que mais tenta não reproduzir gordofobia que eu conheço) fica pisando em ovos pra conversar comigo e eu noto que tem horas em que ela acaba esbarrando nisso, ainda que com mil ressalvas a ela.
Bate no liquidificador a pressão da família, a sociedade te olhando feio, seu mal estar mental= milshake de gordofobia. Absolutamente indigesto.

Se tem algo que eu tenho certeza absoluta que faz mal pra saúde (física, mental, psicológica, espiritual, etc) é esse milshake. E quando começam a enfiar todo dia goela abaixo é claro que você não aguenta o tranco. E nem tem que aguentar, quem tem que desconstruir a gordofobia, aliás, não é você: breaking news! São os gordofóbicos!

E por que eu estou falando isso tudo, que parece tão óbvio? Porque eu notei o peso dos olhos de quem vê e o quanto a imagem que eu passo para os outros influencia a forma com que eu me vejo e como lido com o mundo quando eu estive na presença de alguém que não me olhou como uma pessoa-gorda-nojenta-etc. Que me olhou como mulher-foda-gostosa.
Antes que vocês me entendam mal, não estou aqui pra dizer que um homem adorador de gordas veio num cavalo branco e me salvou de todo mal, absolutamente não! O que eu quero é que vocês possam ver, assim como eu vi e senti, que não há nada de errado (ou certo) com meu corpo. Ou com nenhum corpo. É que estamos permanentemente sujeitas aos julgamentos dos outros e a grande maioria dos olhares é anti-gordxs!

A gordura, ela NÃO está nos olhos de quem vê, ela é real quando você é gorda (e não quando você acha que é mas não é). O que está nos olhos de quem vê é a GORDOFOBIA. Sacaram?
Quando a gente vê que o machismo é um instrumento de poder dos homens, numa sociedade patriarcal que oprime as mulheres, nenhuma pessoa esclarecida politicamente teria coragem de culpar uma mulher por ser oprimida e sofrer as consequências do machismo, não é? Da mesma forma, usando a mesma lógica (e não simetria, é diferente) qual o sentido de culpar a pessoa gorda por ser gorda se quem está errado e utilizando de um mecanismo de poder e controle são as pessoas não-gordas (e, via de regra, gordofóbicas, assim como todo homem é machista, toda pessoa não-gorda é gordofóbica!)? Inclusive, todos os argumentos médicos e etcs são construídos dentro da lógica de uma medicina que é machista e gordofóbica, então não me venha com essa. Se você é gordofóbico assuma, trabalhe suas questões, mas não venha por favor, nunca mais me dizer que é pela minha saúde!

Sei que estou sendo repetitiva, mas a ideia é ser didática, então, só pra finalizar, me acompanhem:
- gordura não é relativa, ela é real
- a gordura não está nos olhos de quem vê, a gordofobia que está
- não, não é preocupação com saúde, apontar a gordura é SEMPRE gordofobia
- não sou eu que preciso "me aceitar", são os gordofóbicos que tem desconstruir sua gordofobia

Combinado? Se tem alguma dúvida releia o post. Na dúvida é só olhar os pontos destacados.

Se precisar que eu desenhe, tá aqui, oh, desenho de uma gorda:




(Mas morbidez, ela também tem outro significado: A suavidade ou delicadeza das formas de uma figura pintada ou esculpida. Languidez. Essa morbidez, ela me representa.)

De terminar, ou quem determina

Terminâncias e determinâncias não caminham juntas. Sempre estive cercada pelas determinâncias, mas nasci liberta das terminâncias. Nada me terminou. Sempre fugi dos términos, vezes como o vento que corre entre os desfiladeiros: tão longe deles que nem senti suas garras roçarem minha pele; outras como o que passa pelas frestas da janela: tendo minha pele dilacerada pela fuga.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Por uma estética gorda (primeiros versos)

Não existem pessoas gordas, não existem mulheres gordas, nenhuma lição nos foi ensinada em nenhuma escola de arte acerca de seus corpos. As gordas flutuam entre o não-ser e um ser-mítico, um ser-fetichizado. Um ser-não-sendo. Os cânones (que deveria estar mortos e enterrados mas ainda suscitam grandes discussões) negam os corpos gordos.
Toda vez que uma pessoa gorda é retratada, em qualquer linguagem artística, ela é retratada dentro da mesma  lógica das pessoas magras. Os ângulos são os que favorecem a magreza. As linhas buscam curvas perfeitas. A gordura é a gordura aceitável, ou é a gordura velada. As cores lhes são negadas. Ou são aceitas para retratos fetichizantes. Não há espaço para a busca da verdade gorda, de uma estética gorda.
A estética gorda é um grande mistério, ela se esconde embaixo de peitos caídos até o umbigo, em celulites que provocam tremor indesejável ao traço. Ela se esconde entre bundas que escondem o mundo. Está no meio dos lábios vaginais ocultos pelas coxas grossas. A estética gorda se esconde. A estética gorda se escondeu por tempo demais. É hora de parar de se esconder e descobrir-se.

{...}


Este é o primeiro rascunho que busca colocar no mundo o projeto. Longe de ser um manifesto, essas primeiras estrofes de um verso-imagético querem empoderar primeiro a mim, para que eu saia ao mundo e assuma que a luta por uma estética gorda é minha... é artística, é política. E é também por mim.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Como encontrei um deus no cemitério, ou como se meter em roubada por homens

Deitada na cama hoje, com meus 28 anos, minha mente fez uma associação com motivações nebulosas que me levou a um episódio excêntrico da minha adolescência excêntrica. O encontro com um deus do cemitério.
Lá pros meus 15, 16 anos, eu levava a ideia de ser gótica bem a sério, então além de usar pancake branco pra ir pra escola de manhã eu costumava frequentar cemitérios cerca de uma vez por semana. Não é algo que eu me orgulhe em contar até porque cada vez gosto menos de cemitério e nos últimos anos em todas as visitas fui me despedir de alguém importante, então não vejo a menor graça nesse rolê.
Mas voltando à minha história. Tinha um cara e eu queria ficar com ele. Quase tudo na minha vida nos últimos, sei lá, 17 anos, pode se reduzir a esta frase, é só colocar qualquer complemento esdrúxulo que certamente terá acontecido. Como por exemplo: "Tinha um cara e eu queria ficar com ele. Então larguei a faculdade e mudei de estado"; "Tinha um cara e eu queria ficar com ele. Então aceitei um acordo de relacionamento humilhante."; "Tinha um cara e eu queria ficar com ele. Então eu trabalhava pra sustentar os prazeres dele." Sugiram outras combinações que eu confirmo se forem válidas.
Nesse caso, tinha um cara e eu queria ficar com ele. E ele me chamou pra ir no cemitério da Vila Mariana com ele. Ele e mais alguém, não lembro quem era o outro alguém porque, afinal, não queria ficar com o outro alguém.
Então tinha um cara, eu queria ficar com ele e ele me chamou pra ir no cemitério da Vila Mariana passar a noite bebendo vinho, conversando, fumando cigarros de cravo e fazendo qualquer outra coisa que os góticos fazem em cemitérios. Pra quem nunca participou deste tipo de rolê pode parecer bastante mórbido e a verdade é que é mesmo, mas o que não é mórbido na adolescência. Mas então esse cara, com que eu queria ficar e que me levou pro cemitério decidiu que eu era uma pessoa digna de saber o seu verdadeiro segredo: ele era a reencarnação de um deus. 
Não me perguntem que deus que ele achava que era, obviamente que eu não me lembro, assim como não me lembro de praticamente nada do que ele me disse além dele murmurando a história com a voz embargada de perfil enquanto fumava algum cigarro pomposo e fugíamos de baratas. Só sei que esse deus estava numa guerra contra outro deus ou entidade ou sei lá e por isso que ele não era amigo de fulano e ciclano, porque fulano era a reencarnação dessa outra parada aí e por aí vocês imaginam a história como quiserem. Tenho certeza que os RPGistas vão conseguir sentir a ideia melhor. 
Se eu acreditei? Nem por um minuto!
Mesmo sem acreditar eu pensei que se eu ouvisse toda a história e se o tratasse como o tal deus eu ia conseguir pegar o cara, que era o que eu queria. Se ficamos ou não eu não me lembro. Do que eu me lembro desta noite é que tinha um muro absurdamente grande pra pular, eu entrei em pânico em cima do muro, não conseguia descer de jeito nenhum então ele e a outra pessoa me atiraram em cima de um monte de pipoca. É, pipoca, na porta do cemitério, ou seja, em cima de um trabalho para alguma entidade. Mas, sabe como é, quando você tá saindo com um deus não precisa se preocupar com essas coisas. Ah, eu também não sabia voltar pra casa então fiquei vagando até achar um lugar conhecido, mas parece que isso não era o tipo da coisa que me incomodava à época. Nem passear em cemitérios ou fingir acreditar nas mentiras dos homens.



Já cheguei numa idade onde eu (quase) não tenho vergonha de contar essa história. É bom nos lembrarmos de certas coisas para ver o quanto nos submetemos a situações bizarras somente pela chance de estar perto de um homem que despertou nosso interesse. O machismo é uma parada tão louca que as vezes parece até piada, mas não é piada. É piada agora que passou, mas da mesma forma que passei a noite com um deus num cemitério me submeti a situações muito piores por acreditar que o amor verdadeiro precisa que você faça sacrifícios, enfrente desafios, esteja sempre à disposição, entre outras coisas que o patriarcado nos conta. 
Quando você se ver numa situação estranha, falando sobre coisas ou indo a lugares que absolutamente não te interessam ou mesmo tomando rumos na vida e tiver um homem, amor, ou relacionamento envolvido na história pare e pense: eu passaria uma noite no cemitério sozinha falando com um deus? (substitua pela situação em que você se encontra). Se a reposta for não, se você não faria isso por você, sozinha ou pelos seus próprios interesses você está fazendo isso errado. E olha que de fazer isso errado eu entendo como poucas pessoas no mundo.